quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Cenas antigas do curso de Dramaturgia (Parte 2)

CENA: PAIXÃO DE AUTOR

PERSONAGENS: LUIZ E NETO


DE COMO UM JOVEM AUTOR DESTRÓI SUA OBRA POR CIÚMES DE SUA PERSONAGEM.
Sala bem decorada. Tapetes, pufes e um sofá aconchegante. Luiz, sentado no sofá, folheia uma pasta cheia de folhas com muito carinho. Sorriso no rosto; profundo prazer. Toca a campainha. Coloca o livro carinhosamente no sofá. Vai atender. Abre a porta.
LUIZ:
Olha ele aí!
NETO:
Antes tarde do que nunca...
Abraçam-se.
LUIZ:
Tem chá...
Vão sentando.
NETO:
Pra depois do papo... Quero saber se leu, o que achou... Só depois mandarei à editora.
Luiz olha o livro. Pega-o em cima do sofá.
LUIZ:
Li sim. Bom demais. História boa...
NETO:
Eu gosto é das tuas.
LUIZ:
Meus olhos grudaram no livro. Ponto pro autor. Comi e dormi pouco. Só li. As palavras, os sons e as imagens alimentavam minh´alma. Enquanto não terminasse, não descansava. E agora, ao fim, tenho saudade.
NETO:
É como conhecer alguém profundamente e ter que se despedir. Sei bem. Seus livros me provocam assim. Quais são as críticas?
LUIZ:
Nada que valha a pena. A obra é profunda, doce e consistente. Personagens parecem existir. Saltar da folha. Stella é assim. . 
Pega a pasta e folheia com profundo prazer.
Mulher inteira. Chego a sentir seu perfume, seu calor. Um foundie de chocolate quente com morango. Cheguei a vê-la em minha frente. Quanta magia. Pele negra, calor de escaldar. Corpo que pede a cama. Lábios que pedem beijos e lambidas e mordidas....
Retira o livro de sua mão.
NETO:
Não é pra tanto.
LUIZ:
É muito mais. É de aguçar os instintos masculinos.
NETO:
Não brinque assim.
LUIZ:
É muito sério. Stella Saltou do livro e veio a mim em imagem clara. Vi-a em minha frente. Quis tê-la pra mim. Tocou-me em cada célula.
NETO:
Pois se assim te toca, não me agrada. Stella é criação minha. Do meu querer. Mulher que criei com o mais fundo do meu desejo. Criei pra mim. Não foi pra outro gostar. É do meu gosto. Mas desgosto de te ver em deleite por coisa minha.
LUIZ:
É obra tua, como disse.
NETO:
E é mulher minha também. Criada por fantasia. Não foi pra isso. Errei na mão.
LUIZ:
Não entendo. Devia estar feliz.
NETO:
Podia gostar de qualquer coisa. Qualquer uma. Quantas mulheres não havia? E quantas não descrevi com mais volúpia? Tinha que ser de Stella? Não aceito. É ciúme? Talvez... Mas ciúme é do que é meu. É do que é mais meu. Mulher no mundo eu não tenho nem sei se um dia vou ter. Stella é a que criei por falta das outras. Mas agora quero ela e mais ninguém.
LUIZ:
Não enlouqueça por pouco.
NETO:
Stella é muito. Disse você mesmo. Seu corpo é real no devaneio que propus. Seu cheiro você mesmo sentiu. Seu gosto de chocolate ao leite você quer sorver como também quero. Nunca quis assim personagem sua. E por que querer a minha? Mulher não te falta. Em cada esquina há uma caída a teus pés. E eu que só tenho a que criei? É justo perder também esta? Justo a que brotei desde dentro até gravar na página a imagem com a palavra mais bem pensada?
LUIZ:
O fato, amigo, é que trabalho bem feito tem dessas. E a mulher ideal é muito melhor do que a real. Stella é bela e perfeita porque é feita de palavra e imagem. E é de todos aqueles que as lê. Queira ou não, é o que fez com seu escrito. Ditou ao mundo mulher pra se querer com tanto desejo que é tua e de todos. Leia quem ler, seja mulher ou homem, novo ou velho.
NETO:
Se assim é, não chegará a ninguém.
LUIZ:
Mas está pronto! E é primoroso.
NETO:
Eu sei!
LUIZ:
Levo à minha editora.
NETO:
Esqueça. Se o que diz é verdade, não posso deixar que Stella chegue à mente de outros homens. Já não suporto saber que você a deseja. Mesmo você, tão querido, meu mestre. Enquanto é tempo, devo reparar meu erro. Ainda posso. Vou-me embora antes da hora do rush. Uma gaveta aguarda Stella. Somente assim será minha.
Neto pega a pasta e a segura com força.
LUIZ:
É ainda jovem. Mudará de idéia com o tempo
Vai saindo e volta.
NETO:
Talvez. Para não correr riscos, queimarei as cópias que tenho. Aprisionarei Stella em minha mente.
Sai. Deixa ainda a porta aberta. Luiz permanece olhando perplexo. Cai a luz.










Cenas antigas do curso de Dramaturgia (Parte 1)

Há algum tempo, escrevi algumas cenas no curso de dramaturgia e esqueci de colocá-las aqui. Aí vai a primeira!


CENA: VINGANÇA E ESPERA
PERSONAGENS: VINGADO E VITMA
DE COMO O VINGADO É PERSEGUIDO POR SUA VÍTIMA.
Luz baixa. Sons de brotar água. Um homem sentado olha o cadáver ainda quente. Limpa a faca na roupa.
Vingado:
Quero um pouco do teu sangue. Não lavarei a roupa, meu troféu. Que o resto escorra, que a água venha e leve tudo. Maldito.
(Levanta. Passa a faca no ar como se cortasse novamente o pescoço dele)
Alguns diriam que um só corte é pouco. É o que basta. Não precipito a te furar mil vezes. Sou mais forte que meu desejo. Ajo por bem maior que ego. Salvo o mundo de um monstro.
(Crava a faca no chão, do lado da cabeça da vítima)
Ainda sorri, infeliz? A dor da corte, a morte a caminho de buscá-lo e ainda sorri? Olhos abertos a me olhar de fixo. Encara e não me deixa. Toda maldade não sei esvai com a dor, Bicho cruel?
(Espera um pouco. Olha fixamente para o fundo da gruta, caminha um pouco em direção à profundeza. Observa como se esperasse alguém. Volta.)
Satan não vem. Matei-te aqui, próximo à sua morada. Ato baldio. Fecha a porta o inferno. Não se recebe ser tão mal. Até demônios têm limites e agem por seus códigos e regras infernais. Não é bem visto perante os seus no inferno.
(Olha fixamente o cadáver. Muda a feição. Respiração se acelera)
Fique onde está! Como ousa levantar? Não me rodeie! Aparte-se de mim, de minha mente. Largue meu corpo, meu pensamento! Não basta o que já foi? É pouco o que fez no mundo?
(Passa a mão no corpo como se tentasse se limpar)
Não some. Não sai. Este tormento tomará de assalto o corpo e a mente do homem bom, do justo que fez no mundo o que a lei não fez? Grande injustiça!
A morte há de resolver. E lutaremos pra sempre no invisível. Luta sem vencedor e sem vencido. Prisão mais certa a ti. Eu pago o preço de não te ver matar crianças como minha filha. Da crueldade te afasto se a ti me uno? Meu sofrimento livrará outros, o preço é justo. Já não há como reaver o que perdi. O sofrimento é grande. E sua perseguição será inferno na terra. E aqui nada posso contra ti.
(Aumenta o desespero. Pega a faca que estava cravada ao lado do corpo, aponta ao peito)
Abandono o corpo como há pouco te vi fazer. Vou preparado à eterna guerra. Que seja, se nada posso.
(Prepara o furo. Desiste na última hora)
Falta coragem. Temo mais a dor do corte que a batalha que virá. Lá fora amanhece. Filhos acordam com seus pais ao pé da cama... Não tenho mais esta alegria. Também não há mais o teu prazer em matá-las. Longe da matéria, teu sofrimento é grande por não poder corresponder aos ímpetos de tua funesta natureza? Também não pode estar distante de mim que te fiz morto? Perseguirá meu corpo eternamente? Siga comigo, pois, olhando o mundo sem poder tocá-lo. Olhando filhos sem poder matá-los. Sofrendo só do lado escuro do outro mundo. Sofrendo a vida que não tem eternamente. E mesmo que eu sofra com a perseguição, o prazer de sentir sua dor compensa a pena a que me impus. Vamos embora que logo o odor de podre tomará a gruta. Quero antes o orvalho da manhã e o cheiro das flores do campo. Quem sabe não há uma criança lá fora? Estou curioso. Me acompanhe, por favor! Uma legião de dragões há de nos acompanhar. Vejam, estão chegando. Trazem consigo flores. São para mim. Pagam-me a beleza de meu ato. Matar é ruim? Quando se livra do mundo ser tão mal, tão terrível, é um bem que se faz ao mundo. O mundo me agradece. Um banquete me aguarda lá fora. E o sofrimento de um mundo que não pode pode tocar se aproxima. Acompanhe-me, por favor!
(Sai o Vingado. O corpo permanece)