terça-feira, 28 de setembro de 2010

Mais imagens quentes

Mais quatro imagens quentes que encontrei no curso de dramaturgia: 

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A noite chuvosa revela em suas luzes turvas um rapaz que corre desesperadamente pelo centro da avenida. Os carros desviam dele e longas buzinadas soam alto junto com os barulhos dos pneus no chão molhado. A correria desenfreada tem a retidão de quem tem um objetivo claro. Traz um copo consigo e parece querer enchê-lo com as gotas de chuva que caem. O jeans molhado pesa sobre seu corpo, mas mesmo estafado seu objetivo não cessa. Os carros desviam, a corrida é objetiva, o copo recebe os pingos d´água e lentamente se preenche.

Pequenas e sedosas mãos de menina apanham a boneca de pano. Assenta na janela como se fosse gente. Os dedos calmos tocam o pescoço e a leveza passa a pesar sobre a boneca. O toque passa a ser pressão, que e se torna esganadura. A pressão dos dedos faz tremer o corpo da boneca, que parece sofrer. Satisfeita do esforço, solta sem remorso a boneca, que esmorece e cai, dobrando seu corpo pela janela e tombando para fora do quarto da menina rumo ao chão.


Sentado no chão da sala cheia de sofás e almofadas um homem chora. Com as costas na parece, vez por outra eleva a cabeça ao céu. Tem em seu colo um monitor velho de computador, que parece deitado sobre ele. O homem chora e acaricia o monitor que, se fosse gente, estaria deitado em seu colo. A relação entre os dois é quase sublime. Não se sabe quem consola, tampouco o consolado. Os fios do monitor repousam sobre o chão e levam até o teclado, posto ao contrário, com as teclas no viradas para baixo. Ligado na tomada, a CPU, indiferente e fria, trabalha como se não houvesse nada a seu redor.

           
Feliz está com os pés num mausoléu antigo, uma moça de vestido florido. A dois metros de altura do chão, mas olhando o céu a mulher jovem sorri despreocupada. O vento do outono arrasta folhas secas e ondeia ainda mais as curvas do seu cabelo. O vestido sobe devagar, revelando belas pernas. O riso aumenta, chega à risada, que desemboca na gargalhada gostosa. O vento bate mais forte, revela um pouco mais de seu corpo. Pouco se importa. Coloca-se apenas como a cruz atrás de si, de braços abertos, sem sofrimento, sem dor nem angústia. Ri feliz e satisfeita. Leve como se a qualquer hora pudesse sobrenadar na ventania.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Imagens quentes

PARTE 1


Aridez sertaneja. Corpo de mulher arqueado no chão. Único sinal de vida em quilômetros. Vestido claro de um florido desbotado. Cabelos castanhos maltratados pela poeira.  Mãos na terra-lama-seca quente do sol esbraseado. Cava com o vigor de quem procura. Dedos longos, palmas calejadas, terra em montes ao lado. O corpo assimila os golpes do calor. Afunda-se aos poucos em seu próprio cavoucar. Não levanta os olhos um momento sequer, nem mesmo quando a pele das mãos e dedos já desgastada principia a sangrar. Arfa e geme enquanto acelera o ritmo da ação. Cava fundo e rápido. O som das mãos na terra ecoa pela planície infecunda. Olhos só olham a terra, ignorante do seu esforço.

PARTE 2

Divindades do candomblé assistem ansiosos à figura da mulher entrar cansada como quem correu quilômetros com um pedaço de osso em suas mãos. Passos dados com fé até o altar onde aguardam santos e oferendas. Curvada coluna, joelhos dobrados, osso toca o chão. Entra o babalorixá que trás consigo uma bacia de metal cheia d´água cujo agradável perfume aos poucos toma o ambiente. Mal pousada no chão a bacia a moça mergulha o osso na água de cheiro. Limpa o osso do barro nele impregnado e de seu próprio sangue que o tingia. Oferece o osso ao céu. Ventania invade o local.


NOVA IMAGEM

Edifício inacabado. Cimento, concreto e metal visíveis. Um homem humilde, macacão sujo, mãos calejadas, respiração ruidosa. Pega alguns blocos e se aproxima do fosso do elevador e os atira calmamente buraco abaixo. Observa com cuidado o cair de cada um. Busca algumas ferramentas e repete a ação entregando-as ao buraco. Olhar firme para baixo. Um a um, todos os objetos vão sendo atirados buraco adentro. Por fim, solta-se a carriola. O ruído do metal nas paredes ecoa por todo edifício enquanto a respiração silencia.




Conto (Curso de Dramaturgia)

Depois de Quinze
            Nem o vento ousa soprar perto da casa onde o aroma de café movimenta a atmosfera. Amigos e parentes aguardam na sala. Poucos rezam e ninguém ousa falar. Rosa ameaça pôr a mão na porta, recua. Respira fundo, abre a porta com cuidado e prostra-se do outro lado. Nena, sobre a cama, olhos colados na sobrinha, respira fundo e exala com gemido. Manda-a entrar e fechar a porta. Uma retórica pergunta sobre o estado da tia inicia a conversa. Nena estava visivelmente mal. Rosa timidamente senta sem saber o que dizer. O corpo parece não aceitar bem a cadeira ou vice-versa. Inquietude silenciada de duas próximas bem distantes. Um abismo de anos.
            Se Rosa viria, Nena tardava a acreditar. Mas lá estava ela, quinze anos depois, no quarto da tia, igualmente decorado e limpo. E foi a tia quem de início tocou no assunto. E embora rosa não quisesse, acabou se envolvendo. Havia gente lá fora. Família e amigos aguardavam seu último momento com Nena, que só queria Rosa antes de ir. Rosa não queria ouvir. Mas dessa vez, a moça surpreendeu-se ao ver que a tia, mais do que falar queria ouvi-la, fato incomum para áspero assunto.
            Se era inevitável falar, que se falasse. Que Tia Nena sempre fora muito mais que mãe, que irmã, que a amava mais que a qualquer outro; que tudo foi acabando por saber por outros que não era assim para a tia. voz que vinha da cama buscava interromper, dar sua versão, mas o vigor da voz da sobrinha era maior, visivelmente mais vivo que o dela. Depois de quinze anos não havia mais que se esconder. Que lamentar. E não havia remorso que a fizesse mudar. 
Mas Nena estava em paz. Chamara Rosa para entregar a verdade como último presente à sobrinha querida.  E começou quinze para as oito. Quase a hora do baile de Rosa. Quinze anos, data esperada por Rosa e Nena. Grande dia para as duas. A última olhada no espelho mostrou Silvia, mãe de Rosa, a olhar firmemente para a irmã. E praguejou por todos os quinze anos de antes. Que Nena tinha tudo. Tinha casa, marido e amigo e ainda roubava-lhe a filha, única coisa que tinha pra si; que suportar por quinze anos era duro, e não agüentaria mais tempo; que se pudesse, mandava-a embora, mas que não ia estragar a festa. Que quem estragou foi ela mesma por, não suportar, embora tivesse tentado. Que foi definhando e não foi possível ficar muito na festa. E acabara naquela cama.
Batiam na porta, Rosa dizia. Que batessem, dizia Nena sem se importar. Aproveitando o pouco tempo que tinha, pegou com as mãos quase já frias nas suadas mãos da sobrinha-filha mais querida. Pediu que não brigasse com a mãe. Agora, uma só tinha a outra. Batiam na porta. Rosa perguntava o porquê do silêncio de quinze anos. Não entendia. Repetia a pergunta. A última inspiração da tia exalou a resposta. Porque nunca roubara ninguém. Não admitia tal injúria.
Batiam na porta mais e mais. Sem a resposta, abriram. Era Ida, prima distante de Rosa. Entrou para avisar que a mãe de Rosa chegara...

segunda-feira, 6 de setembro de 2010