segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Conto (Curso de Dramaturgia)

Aí vai um conto que eu fiz para o curso de dramaturgia. Ainda não tem título e tem relação com uma das imagens quentes anteriores.



De boca em boca correu a notícia e mais veloz que a bala do fuzil veio gente de todo lado. Uns para agir, outros para assuntar, todos estavam ali. Com os pés na lama molhada, mulheres e crianças assistiam os homens invadindo a casa e arrastando consigo o embriagado senhor, que pouco se defendia. Jogado ao centro da ruela, circulo formado em seu entorno. Surge diante da porta a mulher, a neta adolescente agarrada a ela. O soluçar choroso da moça impressiona e faz aumentar o burburinho por alguns segundos. Ofensas feitas ao senhor jogado ao chão são proferidas por segundos e, ao cessar, ouve-se a boca da mulher que abraça a neta:
- Creio em Deus Pai todo poderoso criador do céu...
Socos e pontapés afundam o homem na terra. Alguns pastores oram na língua dos anjos. Ao longe, um atabaque toca para Ogum. Os soluços e gritos da menina rasgam a garganta e ferem os ouvidos. Do velho apanhando nada se ouve a não ser o estalar de pele e ossos. Findam-se as preces e a surra. O atabaque silencia em respeito. Abre-se o circulo e numa mistura de barro e sangue surge retorcido e rastejante o avô, que em direção aos pés da neta, sussurra atordoado:
- Perdoa o vô, filha! Perdoa o vô!
A menina vira as costas, adentra a casa e segundos depois, retorna segurando o choro com uma vasilha e dentro dela alguns pedaços de bolo de fubá.
- O senhor quer bolo?
A resposta vem misturada à massa de saliva, sangue, terra e restos de dente:
- Guarda um pedaço que eu já vou.
A velha suspira e a tensão dos ombros se alivia. A multidão inicia a retirada acenando para a mulher em gesto solidário.
- Precisando, avisa!
- Deus lhe pague! – respondem os olhos que quase choram.
- Té mais, Seu Jorge! – Arriscam alguns vizinhos mais íntimos.
Os passos decididos da esposa retornam à cozinha de casa. Logo entra o marido, envergado de dor em direção ao banheiro. O sofrimento de ter que retirar a roupa relembra os golpes há poucos recebidos. O remorso e a vergonha atingem a liquidez da lágrima, que vai ao ralo junto com a sujeira física e a podridão espiritual. Relembra à violência contra a neta não com o prazer do psicopata, mas com o pesar do arrependido. Pede perdão aos céus. Lá fora, o terço é rezado na rádio e o aroma de café traz um pouco de energia.
A porta se abre e vê-se de um lado a esposa em prece e do outro a neta de costas à beira do fogão velho. Ambas olham o homem um pouco mais recomposto com olhar nem frio nem quente.
- Deus é bom e justo! – disse na pausa entre uma e outra Ave-Maria.
Sem ter muito o que dizer e esperando sentir-se um pouco aliviado dos ferimentos que latejam, senta-se na cadeira próxima à mesa o marido, o avô, o pai. A neta ainda de costas tenta segurar o choro. A mãe, confiante na justiça de Deus e dos homens termina o terço, faz o sinal da cruz e enche o copo do esposo com o resto de café que ficou no bule.

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