quarta-feira, 10 de abril de 2013

Carne de Língua (Diário de Bordo do Curso de Formação de Contadores de Histórias) Aula 3


Ela nos queria perto, mais do que isso, próximos, juntos. Rogou praga nas cadeiras do fundo, mas antes pediu que lá não sentássemos. Bruxa não adverte do feitiço que joga, bruxa então não é. Eliana era o nome da Maga que logo via. Iniciou falando-nos de penumbra, palavra que adora, pois nesta condição de "nem escuro, nem claro" é que se encontra o ato de contar histórias. "É ter os pés fincados no território do mistério", disse-nos com os olhos brilhosos.

Apresentou-nos a Tankha, mandala feita de areia por Monges, trabalho que dura horas e logo após seu término é dissolvido. Comparou a feitura da obra que toma horas e horas dos monges ao trabalho dos contadores de histórias, que após a contação dissolvem e desmancham aquele universo, aquela penumbra psíquica, mas que a história permitia um encontro com a sombra, tal qual na Tankha, que representa o eixo do mundo e também apresenta a mesma.

A partir daí, conduziu-nos a um universo fantástico onde a voz dos contadores é capaz de "fazer alma", pois o mundo já tem  muita explicação e nosso compromisso é com o que não é rotina, com o que não é normal, que o mundo está um caos, mas que sempre se encontra ordem em algum lugar (eu cá, sei onde está a ordem que me agrada) e "a gente se torna importante na medida em que se faz o que está convocado a saber".

Com a mesma simpatia do inicio, disse que adorava ser interrompida, que não queria falar o tempo todo sozinha, deixou-nos à vontade para contribuirmos e foi então que a aula se enriqueceu. Foram uma série de inquietações pessoais e coletivas, existenciais, ideológicas, políticas, onde também nossos monstros e sombras foram expostos, mas não são eles os "auxiliares" do herói no cumprimento da jornada?

Foi então que uma frase brotou da boca de um colega, que aprendera com sua mãe a dizer "Para todo mundo a minha cara de alegria, porque ninguém tem nada a ver com a minha dor", frase tornada lei em seu universo corporativo, onde quando indagado através do retórico "Tudo bem?", a resposta vinha também automática "Sempre bem!" Foi lindo ver como a força brota da alma de alguém e a circunstância exige determinada postura. Sou o primeiro a dizer para meus meninos "Hoje não estou bem, preciso de vocês...", pois minha condição me permite. Sou privilegiado. Outras histórias "Sempre bem" nos contou e mesmo que permeada de tristeza, de certa forma tudo terminava mesmo positivamente. 

Perdi já o fio e pensamentos se embaraçam em meio às reflexões e lembranças das palavras da Maga. Falou-se tanto e com tanta qualidade que reviro aqui lembranças e anotações a fim de tornar este meu tecido literal ao menos um pouco compreensível. Afinal, contar histórias é uma busca humana por significados, sempre na iminência de desaparecer em meio ao caos. Quase que texto meu se foi... 

Retomemos: Uma história é uma imagem construída em palavras. Persistiu o momento de fantasia, que sempre "revigora a realidade", nas palavras da mestra, mas acompanhou-me uma sensação de "não estou só", quando falou-se que nas histórias era possível que houvesse violência e morte e trauma, já que não ela não respondia às regras do mundo real, que grande parte dos heróis clássicos eram filhos bastardos, que desconheciam os pais e enfrentavam grande infortúnios para só no fim da jornada descobrirem que os pais eram deuses. O sentimento de libertação veio ao ápice quando discutimos a questão trauma-resiliência. Citei os pedagogismos que me incomodam profundamente quando tudo "vai traumatizar a criança", desde um saci com uma perna, um lobo mau ou um pau que nem pode mais se atirar (metaforicamente) no gato. Nascer é trauma, o ouro é o material mais resiliente do mundo por ter capacidade de resistir a altas temperaturas, não havendo, dessa forma, resiliência sem trauma. E estamos poupando (com a melhor das intenções) as crianças de traumas e frustrações, como então criar resiliência? Ouvi tudo com brilho nos olhos...

"Nunca é cedo para um herói nascer." E o herói está em todo lugar quando o menino do abrigo é capaz de encontrar em sua história elementos presentes nas epopeias, ela finalmente consegue se comunicar com o mundo externo, talvez aí esteja o princípio de uma nova jornada. Talvez. E o contador é isso, essa dobra no tempo, capaz de disseminar na atmosfera um infinito de possibilidades. Dessa forma, o mundo vira um vale de fazer alma, terreno fértil do contador, que semeia e oferece uma overdose de beleza. Quem precisa de drogas com isso? Todo vício é no fundo um desejo de espiritualidade. E há forma mais profunda de se tornar espiritual do que sendo mito de si mesmo? Encontrando sua própria ferida, que é a busca de cada contador, é o que se tenta curar em cada narrar e desenrolar de fios, fatos e narrativas. Mas cada um há de criar sua própria, e desenhar com seus próprios traços a mesma narrativa cujo nome é vida. Afinal, "é arriscado que exista apenas uma versão".

Lá vou eu criar a minha, anotar meus sonhos toda manhã num caderno e dormir sempre após ver uma imagem de um livro de arte. Recomendações da Maga, que venho tentando seguir. Assim como quero ler os livros por ela recomendados.

"O murmúrio dos fantasmas" Boris Cyrulnik

"Quando eu voltar a ser criança" Janusz Korczak

Houve outros também, mas perdi-me em meio às divagações dela. Saí pisando em nuvens, ansioso pelo próximo encontro...


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